Entre as irregularidades, governo federal não realizou consultas às comunidades tradicionais impactadas pela obra
O anúncio da liberação para a repavimentação do Trecho do Meio da rodovia BR-319, entre os quilômetros 250 e 655 da estrada que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), repercutiu negativamente entre organizações ambientais. Por outro lado, os governos estadual e federal adotaram um tom de comemoração.
A medida, ao mesmo tempo que é o maior avanço que o processo de licenciamento da rodovia teve nos últimos 15 anos, é avaliada como um retrocesso, uma vez que a licença foi emitida sem consultar as populações impactadas pelo asfaltamento da BR-319.
Licença Prévia
Expedida na última quinta-feira (28) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Licença Prévia (LP) autoriza a criação de projetos para obras no Trecho do Meio, entre os municípios de Beruri e Humaitá (ambos no Amazonas).
Pelo Twitter, o ministro da Infraestrutura Marcelo Sampaio escreveu: "Dia histórico! Licença prévia para reconstrução da BR-319/AM – trecho do meio – emitida hoje pelo Ibama".
Também pelo Twitter, o governador Wilson Lima (União Brasil) acrescentou: "Coloquei o Estado à disposição para ajudar no que for necessário. A BR-319 é um sonho do povo do AM e está prestes a se tornar realidade".
O documento sugere a criação de uma Unidade de Conservação para garantir o usufruto "sustentável e exclusivo dos povos Mura e Munduruku, que tradicionalmente já habitam a região do Lago Capanã", e que serão impactados pelo asfaltamento da rodovia.
Área sensível
A preocupação das entidades ambientais é outra. A região de influência da rodovia abriga 69 Terras Indígenas (TI) e 42 Unidades de Conservação (UC). Um relatório publicado em abril mostrou que a expectativa de concessão da LP fez o desmatamento crescer 41% na região da BR-319, índice superior ao registrado em toda a Amazônia Legal.
Nos últimos cinco anos, o número de ramais abertos na área de influência da rodovia já supera em quase o dobro o tamanho original da estrada, o que representa, na visão de especialistas, mais um reflexo das promessas de repavimentação, além de aumentar a pressão sob áreas protegidas no entorno da rodovia.
Para a secretária executiva do Observatório BR-319 Fernanda Meirelles, a forma como o processo de licenciamento se deu abre brechas para judicializações e mais atrasos. "Vemos com grande a da Licença Prévia neste momento de disputa eleitoral, a decisão tem evidente motivação política e eleitoreira", ressalta.
Meirelles pontua outros fatores de preocupação social. "A pavimentação aumenta a ocupação nas beiras das entradas, força a abertura de ramais floresta adentro, que chamamos de espinha de peixe, gera prostituição, inclusive infantil, nas comunidades, e leva a conflitos fundiários", pondera.
Estrada 'esquecida'
Quando foi inaugurada pela ditadura militar, nos anos 1970, a ligação entre Manaus e Porto Velho era 100% pavimentada. Na época, a viagem entre as capitais levava 12 horas. Mas o elevado volume de chuvas da região, que possui um dos mais altos índices pluviométricos de toda a Amazônia, e as alternativas hidroviárias para o transporte de cargas, fizeram a BR-319 ser paulatinamente esquecida.
Em 1988, a última linha de ônibus que operava no trecho foi suspensa porque a estrada estava intrafegável — isolando centenas de famílias que haviam se instalado em suas margens em busca de uma vida melhor.
Apesar da constância com que governos pautam a pavimentação, o processo de licenciamento tem se movimentado muito pouco nos últimos anos. No entanto, o tema volta em anos eleitorais: entrou em vários planos de governo, como o de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), de Lula (PT), e agora, de Bolsonaro (PL).
'Pressa é inimiga da perfeição'
O diretor da WCS Brasil, Carlos César Durigan, aponta a pressa como a razão pela qual o processo de licenciamento das obras na BR-319 tem demorado tanto. "Fazer direito já demandaria muito tempo e paciência, mas fazer de modo capenga vai levar a mais questionamentos e não deve agilizar o asfaltamento, e sim gerar aberturas a processos jurídicos. Além do que, irá repercutir de forma negativa no cenário nacional e internacional", avalia.
Entre os atropelos no processo, Durigan lembra que as audiências públicas acontecerão em meio à pandemia, e sem que as comunidades do entorno tenham sido convidadas a participar; o estudo de componente indígena, item obrigatório para calcular o impacto da obra sobre as populações nativas, ainda nem foi concluído; e mesmo assim, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), etapa importante para o prosseguimento da obra, foi entregue.
Posição governamental
Em nota, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) informou que "a Licença Prévia atesta a viabilidade ambiental do empreendimento e estabelece os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos na próxima fase do licenciamento".
Segundo o órgão, foram realizadas audiências públicas para apresentar para a comunidade do Amazonas no segundo semestre de 2021. "O Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) apresenta os resultados dos estudos técnicos e contém linguagem clara para divulgação dos elementos do estudo ambiental aos grupos sociais e instituições interessados no licenciamento do empreendimento", conclui a nota.
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